Tradução: Mandela e a África do Sul

Relembrando dias de milagres e maravilhas

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Nelson Mandela e Paul Simon em 1992.

Tragam Nelson Mandela de volta,
Tragam-no de volta para casa, para Soweto.
Queremos vê-lo andando pelas ruas
Da África do Sul, amanhã.

Os cães farejadores verificaram a arena, depois a banda passou pelos manifestantes segurando cartazes, depois houve a passagem de som e foram divulgados os números da turnê Graceland de 1987 na Europa e nos Estados Unidos, quando o público estava de pé, dançando e cantando. Em algum momento na metade daqueles shows alucinantes, Hugh Masekela se aproximou do microfone e cantou os primeiros versos da sua música Bring Him Back Home. Por um momento, fez-se um grande silêncio na sala – como se todo mundo entendesse a dor e o sofrimento da África do Sul e o desejo do retorno do homem preso em Robben Island, Nelson Mandela.

Quando Hugh terminou o primeiro verso, colocou seu trompete nos lábios e tocou um solo de intensidade rítmica irresistível. A multidão explodiu em aplausos e começou a dançar de novo a música alegre da triste terra da África do Sul.

Esta semana, de luto por Mandela e celebrando sua vida, estou relembrando as experiências que tive com Graceland, que mudaram minha vida. Senti a mesma afeição quase mística e a familiaridade exótica que experimentei a primeira vez que ouvi música sul-africana. Mais tarde, houve a emoção visceral de colaborar com músicos sul-africanos no palco. Adicione a essa mistura potente as novas amizades que fiz com os meus companheiros de banda, e você terá uma das experiências mais vitais da minha existência.

A maior parte da trupe de Graceland eram partidários fervorosos do Congresso Nacional Africano (CNA) e muitos tinham conhecido o Sr. Mandela pessoalmente ou tinham memórias significativas dele. Hugh, exilado de sua terra natal desde o início da década de 1960, se lembrava de ter crescido tendo a família Mandela como amigos próximos. A ex-mulher de Hugh, Miriam Makeba, também uma exilada sul-africana, era amiga de longa data de Mandela e de sua segunda mulher, Winnie.

Bakithi Kumalo, nosso baixista e o homem responsável por aquele solo de baixo mágico impossível de ser tocado em You Can Call Me Al, se lembrava de ter crescido em uma casa em Soweto, não muito longe de onde os Mandelas moravam. Ele se lembrava de ficar do lado de fora de sua casa, cantando canções sobre liberdade e, usando o nome do clã de Mandela, entoar: “Madiba, volte para casa!”

Ray Phiri, nosso extraordinário guitarrista, era amigo e seguidor do líder anti-apartheid Steven Biko. Barney Rachabane, que tocou sax e flauta irlandesa, tinha que sair da sua casa em Soweto com sua família para um hotel próximo, todas as noites, enquanto seu irmão e primos defendiam seus bens dos saqueadores e negros anti-CNA. Nas longas viagens de ônibus após os shows, o debate político apaixonado se revezava com conversas sobre música.

Mas aí surgiu o Ladysmith Black Mambazo. Seu fundador e líder, Joseph Shabalala, era da township de Ladysmith em KwaZulu, governada pelo Partido Inkhatha Freedom, liderada pelo chefe zulu Mangosuthu Buthelezi. Shabalala era um Zulu orgulhoso e essencialmente apolítico, mas havia uma longa história de animosidade tribal entre os Zulus e os povos Xhosa que remontava a séculos. A maior parte da liderança do Congresso Nacional Africano, incluindo Oliver Tambo e Thabo Mbeki, eram Xhosa, assim como Mandela e Miriam, que não falavam com os membros do Black Mambazo.

No entanto, a tensão nos bastidores nunca foi revelada para o mundo exterior. Hugh, que tinha talento para a diplomacia na mesma proporção que tinha para a música, protegeu a imagem dos artistas de Graceland, como uma trupe unificada, e, apesar de séculos de feridas tribais antigas, se certificou de que estávamos unidos.

O disco de Paul Simon de 1986, Graceland teve uma tour em 1987, que inclui esse show em Harare, Zimbábue.

Na verdade, a música do álbum Graceland representou uma cultura sul-africana negra unificada, mesmo que tenha vindo de muitas heranças tribais diferentes. The Boy in the Bubble é um exemplo da música modal de acordeão do povo Sotho. I Know What I Know é de origem Shangaan. Homeless é música Zulu de coral, já Diamonds on the Soles of Her Shoes, Gumboots e You Can Call Me Al eram músicas de jives das townships. Músicas urbanas diretamente das ruas de Soweto, onde pessoas de diferentes origens étnicas coexistiam submetidas a um governo sul-africano racista. Graceland surgiu da alegria da música compartilhada e da tristeza do apartheid.

Em 11 de fevereiro de 1990, Mandela foi finalmente libertado da prisão, e, em 1992, a turnê Graceland passou pela África do Sul. Foi uma ocasião extremamente emotiva para todos nós, mas em especial para Hugh e Miriam, que estavam finalmente livres para voltar para casa. A recepção em nossa homenagem foi realizada pelo CNA e oferecido pelo Sr. Mandela, quando o apresentei ao Sr. Shabalala. Um deles era um Xhosa e o outro um Zulu, mas os homens se abraçaram, e Mandela chamou o grupo Ladysmith Black Mambazo de “embaixadores culturais da África do Sul”. Em 1993, eles acompanharam Madiba quando ele recebeu o Prêmio Nobel da Paz.

Era da natureza de Mandela unir as pessoas e não separá-las por tribo ou raça. Em seu discurso de posse presidencial, ele disse a famosa frase: “Paz a todos vocês, pretos, brancos, amarelos, vermelhos, pequenos, grandes. Paz!”

Para o 25º aniversário do lançamento de Graceland, em 2012, a nossa velha trupe se reuniu. Infelizmente, foi sem Miriam, que faleceu em 2008. Nos apresentamos em Amsterdã no dia 18 de julho, aniversário de Mandela. Quando Hugh se aproximou do microfone para cantar Bring Him Back Home, ele apresentou a canção dizendo “Os lindos velhos homens que negociaram o caminho para a nossa liberdade na África do Sul agora já têm muita idade, e alguns deles já nos deixaram. Mas nós gostaríamos de começar pedindo que dancem sem parar em homenagem a todos esses velhos senhores e a Nelson Mandela, que faz 94 anos hoje!”.

Naquela noite, no jantar, Hugh relembrou o Mandela que conheceu como amigo e figura inspiradora. Ele disse que tinha falado com Mandela pelo telefone e, quando desligou, caminhou diretamente para o piano e escreveu Bring Him Back Home. Em outra noite, Hugh me disse que Mandela ligou para dizer que estava preocupado com a saúde de Miriam, que ela não estava cuidando de si.

“Acho que você deve ligar para ela e falar seriamente sobre seu comportamento”, disse Mandela.

Hugh, que já não era mais casado com Miriam, disse: “Não, acho que seria mais eficaz se você ligasse para ela”.

“Ah, não”, respondeu Mandela. “Eu tenho medo dela”.

Na verdade, todos nós tínhamos medo de Miriam – não importa se a raiva dela fosse despertada por desacordos políticos, por um contratempo no lugar errado, ou, no meu caso, por uma harmonia em Under African Skies que não fosse de seu agrado. Ela era capaz de intimidar até mesmo o homem que não foi derrotado por 27 anos em uma cela da prisão de Robben Island.

De certo modo, a coisa mais incrível sobre Mandela é que ele não faz parte da ficção. Ele realmente viveu durante a nossa existência. As qualidades que ele encarnou – dignidade, compaixão, misericórdia e perdão – remetem a uma moralidade que passamos a idealizar e esperamos dos nos nossos líderes atuais.

Bring Him Back Home é tão relevante hoje como era quando foi escrita em meados da década de 1980. O que antes era uma demanda, hoje é um lamento do coração da humanidade para os valores que Mandela defendeu. Talvez seja pessimista dizer que não vamos nos dar conta de sua visão tão cedo. Os pessimistas em geral têm razão.

No entanto, Mandela era um otimista e seu otimismo mudou a música e mudou o mundo. Depois de assistir a um concerto do grande músico sul-africano Johnny Clegg, Mandela disse: “É a música e a dança que me deixam em paz com o mundo e em paz comigo mesmo”.

Que ele descanse em paz.

Paul Simon é cantor e compositor.

Tradução do original em inglês disponível aqui.
Traducción al portugués del original en inglés disponible aquí.
Portuguese translation of the original English version available here.