Os intérpretes da ONU garantem a qualidade da tradução
Tradução do original de Nikola Krastev em inglês
NAÇÕES UNIDAS — Quando o líder líbio Muammar Qaddafi proferiu seu famoso discurso de 96 minutos perante a Assembleia Geral da ONU, ninguém estava prestando mais atenção em cada minuto que passava do que seu tradutor pessoal, Fouad Zlitni, que Qaddafi tinha trazido para a ocasião. Faltando pouco para o fim do discurso de Qaddafi, vencido pelo esforço de traduzir do árabe para o inglês o discurso incoerente do líder líbio (às vezes em tom de irritação) durante 75 minutos sem parar, Zlitni desmaiou.
O egípcio Hossam Fahr, chefe do departamento de interpretação da ONU, disse que o tradutor de Qaddafi ultrapassou e muito os limites normais do que se espera que um intérprete seja capaz de fazer. “Foi uma situação completamente atípica, pois cada Estado-membro tem o direito de trazer seu próprio intérprete. [Qaddafi] tinha seus próprios intérpretes, eles já estavam instalados nas cabines. Então permitimos que trabalhassem e infelizmente um deles desmaiou aos 75 minutos do discurso”, disse Fahr.
“Bato palmas para ele – teve um desempenho muito bom sob tais circunstâncias”.
O incidente serviu para destacar a natureza estafante da interpretação simultânea, uma profissão que poucas pessoas comuns têm a chance de observar.
Porém, nas Nações Unidas, que reúne 192 Estados-membros e uma profusão de línguas maternas na sua batalha diária pela diplomacia internacional, a interpretação é parte essencial de suas operações. A Assembleia Geral Anual – que todo ano, em setembro, reúne todos os membros da ONU para uma série de discursos e análises políticas durante duas semanas – é o equivalente da Copa do Mundo de interpretação profissional. Mas mesmo no dia a dia, os conselhos, comitês e publicações da ONU produzem trabalho suficiente para o departamento de idiomas, composto por quase 460 profissionais, constantemente ocupados.
Barry Olsen, chefe do programa de interpretação de conferências do renomado Instituto de Estudos Internacionais de Monterey, na California – onde muitos tradutores da ONU se formaram – diz que os especialistas em idiomas da ONU em geral são considerados os melhores do mercado. “Um tradutor ou intérprete que trabalha para as Nações Unidas chegou ao que é considerado um dos ápices da profissão. É uma organização respeitada e o trabalho linguístico que ocorre nas Nações Unidas é da mais alta ordem”, disse Olsen.
Nervos de aço e estilo
Apesar de os idiomas oficiais das Nações Unidas serem o inglês e o francês, a ONU tem seis línguas oficiais para as quais o grosso de seus documentos e publicações oficiais são automaticamente traduzidos – inglês e francês, além de árabe, chinês, russo e espanhol. No caso de necessidade de outros idiomas, a ONU contrata intérpretes freelancer ou as delegações dos países trazem seus próprios tradutores.
Os intérpretes da ONU em geral traduzem a partir dos idiomas que aprenderam para a sua língua nativa. No caso de idiomas como chinês e árabe – mais difíceis de se encontrar tradutores aptos – os intérpretes traduzem tanto para sua língua-mãe como para suas segundas línguas. É uma experiência intensa que pode exaurir até os intérpretes mais experientes. Para evitar uma maratona a la Qaddafi, a ONU segue um horário rígido no qual os intérpretes trabalham em duplas, alternando a tradução com o parceiro a cada 20 minutos, no máximo (os discursos da Assembleia Geral, ademais, em geral duram no máximo 15 minutos).
Dominar um idioma é apenas o primeiro passo para se tornar um bom intérprete. Em um guia da ONU voltado para aqueles interessados em se tornar especialistas linguísticos, o trabalho aparenta ser uma mistura de diplomata, engenheiro de foguete e controlador de tráfego. “Um bom tradutor”, diz o guia, “conhece técnicas para lidar com uma enorme variedade de situações difíceis, tem nervos de aço, não entra em pânico, tem estilo e consegue acompanhar oradores rápidos”.
Competição acirrada
Aparentemente, é difícil encontrar gente assim. Apesar de os salários estarem entre os mais altos da profissão – os intérpretes de ponta da ONU podem ganhar até 210 mil dólares por ano* – as Nações Unidas estão sofrendo com uma forte escassez de pessoal qualificado. “Estamos em busca de gente com boas habilidades de compreensão. Há casos de pessoas que traduzem do francês ou inglês para o russo mas que não necessariamente têm fluência em inglês ou francês”, diz Igor Shpiniov, um tradutor ucraniano que coordena os programas de treinamento e alcance do Departamento de Gestão da Assembleia Geral e Conferências. “Às vezes, é um paradoxo: eles são capazes de traduzir textos sobre energia atômica, mas se você pedir que comprem leite em um supermercado francês, eles ficarão perdidos”. A concorrência para os cargos é acirrada. No ano passado, dos 1800 candidatos a intérpretes de chinês, só dez foram aprovados na seleção da ONU. Para árabe, somente dois dos 400 candidatos passaram.
Muitos especialistas em idiomas da ONU trabalham como tradutores devido ao número extenso de publicações e documentos que tramitam pelo órgão internacional a cada ano. Porém, o cargo com maior prestígio é o de intérprete de tradução simultânea, quando os especialistas se sentam em cabines com isolamento acústico e traduzem discursos, em geral altamente técnicos ou carregados de conteúdo político.
A questão da vírgula
A profissão surgiu pela primeira vez durante os tribunais de Nuremberg, que julgaram os criminosos nazistas em 1946. Hoje em dia, tanto a Assembleia Geral como o Conselho de Segurança contam com oito cabines de tradução. Uma para cada uma das línguas oficiais da ONU e duas para traduções de línguas alternativas – de acordo com as regras da ONU, os jornalistas são proibidos de participar de sessões com interpretação ao vivo.
Os intérpretes que trabalham em eventos importantes como as reuniões do Conselho de Segurança em geral têm tempo para se preparar, tendo acesso com antecedência a informações sobre os procedimentos. Isso possibilita que eles se familiarizem com os conceitos e a terminologia do debate. A pauta para a Assembleia Geral em geral é planejada com meses de antecedência, possibilitando que a equipe de tradução tenha um período amplo para estimar quantos intérpretes serão necessários para as conversas programadas.
Ainda assim, quando chega a hora de traduzir, não há nenhum tipo de planejamento antecipado que possa proteger completamente os intérpretes da ansiedade. Alguns estudos demonstraram que durante debates intensos, os intérpretes costumam sofrer aumento de pressão e do ritmo cardíaco, à medida que se esforçam para traduzir diferentes termos, nuances e argumentos para frases refinadas e compreensíveis.
Filmes como A Intérprete – estrelado por Nicole Kidman como uma tradutora da ONU , filmado dentro do próprio complexo das Nações Unidas – trouxeram uma imagem de glamour de Hollywood e intriga ao ofício. Na realidade, o trabalho é bem mais prosaico, apesar das constantes preocupações sobre descuidos e erros de interpretação involuntários, que sempre mantêm a tensão presente.
Só para dar um exemplo, certa vez houve uma grande controvérsia quando uma vírgula foi removida do texto de uma resolução da ONU envolvendo duas ex-repúblicas soviéticas (cujos nomes não foram mencionados) prestes a iniciarem uma disputa por questões de fronteira. Um dos países, irritado com a omissão, exigiu a correção. Mas os tradutores da ONU, impávidos, disseram que a vírgula tinha alterado o sentido do texto. Nem todo mundo ficou feliz, mas no final das contas, a vírgula permaneceu fora.
Erros e aplausos
O chefe do departamento de interpretação, Fahr, também se lembra de ter cometido um erro quando era intérprete de árabe-inglês. O diplomata egípcio Boutros Boutros-Ghali tinha acabado de assumir o cargo de secretário-geral da ONU, em 1992. “O que saiu da minha boca foi ‘Meus parabéns pela eleição como secretário-geral dos Estados Unidos’. Todos os presentes à Assembleia Geral riram”, disse Fahr. “Daí o presidente da Assembleia Geral perguntou ao então secretário-geral, [o peruano Javier] Perez de Cuellar, ‘Por que eles estão rindo?’ que respondeu, ‘O intérprete de inglês cometeu um erro’. ”
No final das contas, Fahr diz que foi aplaudido, como mostra de perdão do público.
Stephen Sekel, ex-chefe do departamento de tradução de inglês da ONU, diz que esses erros são raros e que os Estados-membros ou coordenadores-sênior raramente exigem a remoção de um intérprete por causa de um erro. No geral, ele diz, as capacidades e o profissionalismo da equipe de tradução da ONU garantem que eles permaneçam como um ativo indispensável, nos bastidores.
“Nossa expectativa é que a equipe de idiomas contribua com bastante conhecimento para o trabalho, com um alto nível educacional e muita curiosidade intelectual”, diz Sekel. “Esperamos que eles estejam aprendendo o tempo todo. Do contrário, não podem sobreviver. Talvez isso explique porque não temos muitos exemplos de erros terríveis que nos levaram ao ponto de causar uma grande crise internacional”.
*Tradutores da ONU ganham até US$ 210 mil por ano, não US$ 79 mil, como o artigo original dizia, “o que reflete a alta demanda por características singulares que um intérprete da ONU deve possuir”, de acordo com Stephen Sekel. O artigo original também não informou a citação exata de Sekel. Ele disse que erros de tradutores são raros e que os Estados-membros ou coordenadores-sênior da ONU raramente exigem punição devido a tais erros.